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Corpo, consumos e comensalidade na cidade: reflexões sobre os afetos na publicidade Body, consumption and commensality in the city: reflections on the affections in advertising
Ronaldo Gonçalves de Oliveira
Professor Convidado do Programa de Pós-graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, Brasil. E-mail: ronaldo907 8@gmail.com
Daniela Menezes Neiva Barcellos
Doutora em Alimentação, Nutrição e Saúde pelo Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Pós-doutorada pelo Programa de Pós-Graduação em Nutrição da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: daniela@neiva.com.br
Shirley Donizete Prado
Professora Associada do Departamento de Nutrição Social do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Pós -
doutorada em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Ceará, Brasil. E-mail: shirley.donizete.prado@gmail.com
Resumo:
Experienciamos múltiplas ressignificações na cidade, lugar de produção de subjetividades e afetividades que se inscrevem nos corpos dos indivíduos. Transitamos entre consumos motivados pelos mais díspares apelos e desejos, construções que nos conduzem a seguir no cenário caótico e inebriante das urbes. Nas questões s obre comensalidade, nada é tão claro como parece, face às múltiplas bricolagens tecidas, inclusive, nas mídias. Esbarramos em muitos paradoxos ao longo do caminho. Nesse estudo, tratamos da temática do afeto em uma narrativa midiática. Voltamos o nosso olhar ao consumo de uma marca de refrigerantes que mobiliza intensos debates nos espaços sociais, culturais e biomédicos, por meio de um filme-propaganda intitulado Regras da casa. Umjogo de subjetividades presente nas cenas suscita valores inerentes aos consumos da comensalidade: saberes, sociabilidades e, sobretudo, afetos.
Palavras- chave:
Corpo; Consumos; Comensalidade; Cidade; Publicidade.
Abstract:
We experienced multiple resignifications in the city, place of production of subjectivities and affectivities that are inscribed in the bodies of individuals. We move between consumptions motivated by the most disparate appeals and desires, constructions that lead us to follow in the hectic and heady scenery of the cities. In the questions about commensality, nothing is as clear as it seems, in the face of the multiple woven bricolages, even in the media. We bumped into many paradoxes along the way. In this study, we deal with the theme of affection in a media narrative. We turn our attention to the consumption of a brand of soda that mobilizes intense debates in the social, cultural and biomedical spaces, through a propaganda film titled “Rules
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of the house”. A game of subjectivity present in the scenes raises inherent values to the consumption of commensality: knowledge, sociability and affections above all.
Keywords :
Body; Consumption; Commensality; City; Publicity.
1 Introdução
Partimos, nesse estudo, de uma perspectiva antropossocial, considerando a constituição dos corpos na sociedade de consumo, num contexto de hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2014). Deparamo-nos com o filme-propaganda da Coca-Cola, intitulado Regras da casa, produzido pela matriz da empresa em Atlanta, EUA, e, a partir desse encontro, um percurso analítico instituiu-se provocando reflexões sobre a sociedade de consumo contínuo e ininterrupto em que estamos imersos, lugar em que manuais e guias explodem com dicas para o bem viver.
É em nome da felicidade que se desenvolve a sociedade de hiperconsumo. A produção de bens e serviços, os meios de comunicação social, as atividades de lazer, a educação, o planejamento urbano, tudo é pensado e criado, em princípio, tendo em vista a nossa felicidade. Neste contexto, abundam os manuais e métodos para viver melhor, a televisão e os jornais destilam conselhos sobre saúde e manutenção da forma, os psiquiatras ajudam os casais e os pais em dificuldades, são cada vez mais os gurus que prometem a plenitude. Cuidar da alimentação, dormir, seduzir, relaxar, fazer amor, comunicar com os filhos, mantermo-nos dinâmicos: que esfera escapa ainda às receitas da felicidade? Passamos do mundo fechado ao universo de possibilidades infinitas para ser feliz: vivemos o tempo do coaching generalizado e dos manuais de instruções para a felicidade ao alcance de todos (LIPOVETSKY, 2014, p. 288).
Para Bauman (2008), o mundo líquido moderno dos consumidores aponta para um impacto importante no modus vivendi dos sujeitos de nosso tempo. A nudez física, social e psíquica imposta pelas novas relações sociais que se expressam no ciberuniverso ganha destaque na composição e ressignificação dos corpos na cibervida. Dentro desse esquema relacional, em que o sujeito deve evitar a todo custo a sua morte social, colocando-se em evidência nos meios de que dispõe para tanto, está o mercado, intermediando
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essas relações e conduzindo os sujeitos à aquisição daquilo que eles têm para vender. A constituição de uma sociedade confessional alarga a fronteira que antes separava o privado e o público. O ato de expor publicamente o privado transforma- se em virtude, dentro da lógica que dita a exibição dos corpos como forma de ganhar espaço social que os mantenha vivos socialmente.
Nessa luta pela sobrevivência virtossocial, quanto mais intensa a avidez para atrair a atenção, maior o reconhecimento e a aprovação para continuar no jogo da sociabilidade. Quanto mais se joga, mais se está dentro do jogo. Nessa lógica o mercado, tal qual um panóptico, desenvolve ou se apropria de ferramentas que captam informações de caracterização e classificação dos sujeitos, separando-os em grupos, cujo critério classificador é a capacidade de pertencer ao jogo; ou seja, os sujeitos valem exatamente o que têm. Os que não possuem o capital exigido para a participação no jogo são classificados num grupo desinteressante ao mercado. São vistos – usando um termo contábil – como passivos. Bom exemplo dessa separação está no sistema bancário, que classifica seus clientes pelo potencial financeiro de que dispõem. A cada grupo, um tratamento específico, ou, para o grupo que se encontra na base da pirâmide social, nenhum tratamento.
Em todos os casos, as pessoas são aliciadas, estimuladas ou forçadas a promover uma mercadoria atraente e desejável: elas mesmas. São ao mesmo tempo produto e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores.
Como um dos atores desse cenário de empresas ávidas por arrebanhar e fidelizar consumidores previamente classificados, está a Coca-Cola, cuja propaganda é objeto de análise deste estudo. Como se manter líder no mercado mundial com produtos que vão na contramão do forte movimento que prescreve a alimentação saudável como forma de estar no mundo e nele permanecer por mais tempo? Essa é a questão que norteia esta análise. Que recursos essa empresa utiliza para majoritariamente ter seus produtos nas prateleiras dos mercados? Como age esse marketing para intervir no consumo e garantir a posição que ocupa mundialmente a empresa? São questões que suscitam reflexões importantes sobre a sociedade do consumo, o mercado e as mídias.
Esta análise tem por viés a comensalidade. Esta faz o movimento de transversalidade no estudo. Olhamos as mesas física e virtual e refletimos sobre as
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emanações que delas se desprendem. Comer à mesa é, para este estudo, um movimento comunicacional. Não importa somente o que se come ou com quem se come; para nós a ato de comer liga-se diretamente a dimensões humanas, objetos de estudo de várias ciências. Assim, imaginemos a comensalidade como elemento que transversaliza a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia, a História, a Comunicação, a Linguística; enfim, a comida e as relações que ela deflagra são itens fundamentais à vida e, por isso mesmo, perpassa vários campos da existência. Justificamos, assim, a comensalidade como viés transversal nas relações antropossociais.
Damos a este artigo a seguinte organização: elaboramos blocos de textos que sejam capazes de promover as reflexões, localizando o leitor e propondo-lhe a organização do pensamento de acordo com as nossas próprias reflexões. Assim, temos o primeiro bloco abordando a perspectiva sobre corpos. Para esta discussão, contamos com o auxílio de Ferreira (2011), que nos embasa para buscar a compreensão do que são os corpos, a partir da perspectiva das artes e da filosofia.
O corpo é o suporte e a garantia de nossa presença no mundo. É atr avés dele que as experiências se cruzam, se articulam, se dão uma ordem e criam uma hierarquia, segundo necessidades e circunstâncias que regem o movimento geral da existência. O corpo é a base, é a estrutura que se constitui na própria existência e se manifesta de forma temporal e finita, é a garantia de nossa presença no mundo e é nele que manifestam todas as atitudes: sensorial, afetiva, emocional, erótica, intelectual e cognoscitiva. Enfim, é no corpo que se dão as manifestações fundamentais da nossa vi da (FERREIRA, 2011, p. 46).
No segundo bloco, abordamos o conceito de comensalidade que propomos neste estudo. Nesse bloco, damos a conhecer a amplitude que tem para nós o ato de comer, que obrigatoriamente precisa responder às questões narratológicas da vida. Entendemos que a relação entre comensais não se dá somente no nível da congregação à mesa, mas também pode-se comer junto e o espaço dessa comida ser desagregador. Pode-se comer junto, estando-se separado. Pode-se comer separado, estando-se junto. Pode-se ainda comer sozinho, estando-se sozinho ou não. Ou seja, o ato de comer como ato deflagrador das vibrações da comensalidade não se restringe a com quem se come; mas, de forma mais abrangente, onde se come, como se come, por que se come, quando se come e qual o estado de alma que se expressa no ato de comer.
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No terceiro e último bloco, atemo-nos ao filme, sua descrição e às análises. Aqui reproduzimos os frames e os descrevemos, para que à medida da abordagem às legendas, às imagens, à música e à paleta de cores, consigamos aplicar os conceitos de corpo e come nsalidade.
Por fim, fazemos uma reflexão final, concluindo o artigo.
2 Desenvolvimento
2.1 Os corpos na sociedade de consumo
A ideia de beleza jamais foi algo absoluto e imutável e suas mudanças de padrão na cultura ocidental estão em sincronia com outras mudanças ocorridas em diferentes áreas do conhecimento. Desde o seu nascimento, a estética associa o belo ao bom e ao verdadeiro, fazendo com que os valores morais, éticos e até político influenciem no que é considerado belo. Os padrões de aferição da beleza do corpo humano estão inscritos na cultura e são influenciados por fatores que estão além da materialidade do corpo, que é apenas o suporte desses valores, ou seja, Ética, Religião, Política e Cultura criam os parâmetros que dão substância à beleza do corpo (FERREIRA, 2011, p. 19) .
É com essa citação que esclarecemos a ideia de corpo para este estudo. Primeiramente, é importante destacar que o conceito de corpo que adotamos aqui encontra-se estritamente ligado a dois outros conceitos: beleza e saúde. Para estabelecer essa associação, necessariamente, precisamos passar pelos estudos da imagem e, mais especificamente, pelos estudos da imagem de si nos discursos espraiados pela nossa sociedade.
O padrão de beleza percebido pela Estética contemporânea à sociedade consumista faz parte de uma construção que se alicerça em padrões que se ligam ao bem. Este, por sua vez, pressupõe a permanência do bom e verdadeiro. Assim, quando falamos em beleza, não nos referimos ao belo enquanto noção esvaziada de sentido e isolada como um campo à parte dos estudos da Ética. Segundo Ferreira (2011), “A Estética não está ligada apenas ao campo dos sentidos, das sensações corpóreas, ela está intimamente ligada à Ética, na medida em que o belo não pode ser ao mesmo tempo mau ou falso” (FERREIRA, 2011, p. 19). Então, aqui, relacionamos o corpo como expressão de um conjunto de questões socioafetivas que converge ou diverge para o padrão contemporâneo, influenciado, em sua construção, pela sociedade
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consumista da hipermodernidade. O belo, o bom e o verdadeiro são elementos inseparáveis na construção imagética que se faz do corpo contemporâneo. Assim, alguém cujo corpo seja significado pela correção de padrão corpóreo somente o é porque atributos físicos e anímicos, concretos e abstratos, se coadunam e formam um bloco único a que chamamos aqui de corpo belo.
O corpo belo é hibrido, posto que se forma a partir da mescla de inúmeros fatores psicossociais. Não se pode admitir, considerando parâmetros sociais dit ados pela sociedade de consumo, um corpo belo que seja mau ou falso. O belo está intimamente ligado ao saudável. Ocorpo belo é saudável, ainda que não o seja; o corpo belo é verdadeiro, ainda que seja esculpido por toda espécie de modelação, seja mecânica, cirúrgica ou de estímulo, enfim, o corpo belo recebe a chancela de saudável e legítimo em tempos de culto à beleza.
Segundo Ferreira (2011, p. 100), os sentidos acerca do corpo, reproduzidos pelo senso comum, cada vez mais incorporam uma percepção utilitarista e pragmática da vida. A velocidade com base na globalização, o processo consumista e a preocupação com o futuro e com a morte impõem uma visão hedonista do corpo que passa a ser instrumento para os prazeres do consumo. As experiências que corroboram a humanidade ocorrem no corpo e para o corpo. O conhecimento é construído no corpo, que é a base das experiências do conhecer-se a si mesmo .
A percepção do mundo se dá, então, pelo próprio corpo. Neste ponto, chamamos a atenção para uma questão importante em todo esse processo: a autoimagem, a imagem de si, o ethos discursivo. Nesse sentido, associamos a percepção do corpo e do mundo pelo corpo ao processo discursivo que se forma nesse mesmo corpo. Frases de efeito, como O corpo fala ou Seu corpo, seu templo não nasceram do nada. Embora pertençam ao senso comum, expressam valores imbricados na sociedade e revelam sentidos atribuídos ao corpo.
Chegamos, então, à noção de corpo como enunciador e enunciado. Considerando o processo comunicativo, podemos estabelecer analogia com o corpo, enquanto elemento de comunicação.
Estar no mundo, ter um corpo, é um ato, antes de tudo, comunicativo. Contém os elementos dos atos de linguagem. É um ato enunciativo de base (CHARAUDEAU, 1983). É elocutivo porque implica o próprio locutor; é alocutivo porque inclui o
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interlocutor e é delocutivo porque é o elemento central da interação comunicativa. Por ser ato locutivo, conta com as modalizações enunciativas. Assim, o corpo é o lugar em que se ancoram os atos comunicativos para fazerem de si mesmos seres sociais capazes de suprir todas as necessidades exigidas pela vida: biológicas, antropológicas, sociológicas, psicológicas, filosóficas, etc.
A noção de ethos discursivo nos ajuda a pensar esse corpo como base comunicativa. Para Maingueneau (2005), o ethos é a imagem que constrói o enunciador, a partir de seu discurso. É formado pelo ethos construído e pelo ethos esperado, o que nomeia como ethos pré-discursivo. A noção de ethos discursivo e pré - discursivo, segundo Maingueneau (2005), e o conceito de autoimagem visto em Amossy (2005), ajudam a entender o corpo como expressão do ethos (imagem), no processo da comunicação. Constrói-se o discurso esperado, confirma-se o ethos. Se esse discurso não atende às expectativas dos interlocutores, rompe-se o ethos pré-construído. Esse conceito interessa-nos como compreensão às diversas formações de imagens que se constroem, se reconstroem ou se destroem nas situações comunicativas.
O entrecruzamento de elementos simbólicos que circulam na cidade e que envolvem as temáticas corpo, comensalidade, mídia e consumos nos oferece a percepção de disposições para uma alimentação saudável e sobre o que é certo e errado no cenário plural da cidade. As evidências sobre determinadas verdades e suas enunciações em certos espaços passariam despercebidas, entretanto, tecem e estabelecem uma bricolagem nas práticas de consumo alimentar do saudável e do que seria o não saudável. Trazemos nesse estudo a ideia de bricolagem alimentar, conforme os estudos de Maria Cláudia Carvalho (2013). “Bricolagem alimentar foi uma estratégia que atravessou as práticas de alimentação [...] como um modo de ‘arrumar’ o universo simbólico, uma estratégia de organização dos significados dos alimentos na vida das pessoas” (CARVALHO, 2013, p. 17). A bricolagem alimentar torna-se parte constitutiva de muitos discursos midiáticos e permite incorporar diferentes sentidos e significados, além de refletir sobre a construção desses conteúdos, suas articulações, o que representam e seus simbolismos.
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2.1 A comensalidade como afeto familiar
[...] uma das referências mais ancestrais da familiaridade humana, pois aí se fazem e se refazem continuamente as relações que sustentam a família. A mesa antes que um móvel remete a uma experiência existencial e a um rito. Ela representa o lugar privilegiado da família, da comunhão e da irmandade. Partilha-se o alimento e, junto com ele, comunica-se a alegria de encontrar-se o bem-estar sem disfarces, a comunhão direta que se traduz pela sem cerimônia dos comentários dos fatos cotidianos, das opiniões sem censura sobre os acontecimentos da crônica local, nacional e internacional (BOFF, 2008).
A comensalidade ganha ares de modernidade com a virtualização do corpo. Meios midiáticos atentos ao mercado da estética corporal predominante em nossos dias publicam dietas de toda a sorte que prometem o corpo perfeito em curto espaço de tempo. A velocidade imposta pelas tecnologias da informação rompe com a sacralidade dos momentos diários dedicados às refeições. Um interessado nesse modelo baseado no conceito de saudável sai de um consultório nutricional com a indicação para que coma de três em três horas, ou várias vezes ao dia. Segundo essa prescrição normativa, isso lhe será benéfico ao organismo e lhe proporcionará a aparência corporal desejada. Tempos modernos, rupturas necessárias!
Quando pensamos no alimento consumido nas mais diversas situações do cotidiano, geralmente, não nos preocupamos com o simbólico estabelecido na relação homem-alimento. Vemo-lo neste estudo como mediador simbólico, que atua nas dimensões cultural, social e psíquica, capaz de se constituir como formador de códigos de comportamento e interação social. É à mesa que os comensais interagem, trocam experiências, afinam-se ou desafinam-se em gostos e preferências. É lugar de troca simbólica. É lugar de unificação antropológica, em que a linguagem do cuidado com o outro, do afeto, do cuidado de si, do sabor, dos gostos e das preferências significa ou ressignifica o sujeito, independentemente de outras linguagens que possam ali existir. Segundo Contreras e Gracia (2011), o alimento se caracteriza como elemento
básico no início da reciprocidade e no intercâmbio pessoal, assim como na manutenção das relações sociais. Uma abordagem puramente nutricional não pode dar conta das relações introduzidas pelo alimento. O ato de comer, para além da questão biológica, apresenta-se como mote para a construção e manutenção das relações sociais, inclusive, para aquelas que se estabelecem no núcleo familiar primário.
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Segundo Boutaud (2011), existem dois eixos fundamentais de nossa humanização, relacionados à mesa: um eixo vertical e um horizontal. Oeixo horizontal está relacionado à agregação, à força de coesão que afeta os convivas e é alimentado pela comensalidade. O outro eixo, o vertical, refere-se à hierarquia, que no âmbito da comensalidade, é colocada à mesa para que se identifiquem, se distingam e se respeitem os papéis exercidos pelos elementos que ali se sentam. Nesse sentido, podem-se elencar os encenados pelos atores da mesa, que strictu sensu estão relacionados à unidade, ao vínculo, à capacidade de intercambiar, à abertura, ao relaxamento, à diversão, aos lugares hierárquicos, aos papéis sociais, ao belo, ao bom gosto, ao sublime. Esses eixos são dimensões da comensalidade que, sob uma perspectiva sócio-histórica, estendem-se a toda organização social estabelecida em diversas culturas, cujas variações, com relação aos rituais do comer, podem ser consideradas, sem que, no entanto, se descaracterize a essência do ato que constitui a comensalidade.
A prática da convivência no seu sentido próprio, a própria imagem da vida em comum (cum vivere), fortalece, desde sempre, a ideia de que comer e beber com o outro favorece a empatia, a compreensão mútua, a comunhão de sentimentos (BOUTAUD, 2011, p. 327).
O desenvolvimento do hábito de comer à mesa e sua manutenção podem proporcionar às famílias a oportunidade da comensalidade. É a oportunidade de estarem juntos e compartir experiências e afeto, é a base de fortalecimento para as relações de afeto familiar. Trazer o filho para os rituais do comer em família é dizer - lhe, por outras linguagens, do acolhimento a que a família se dispõe. É indicar-lhe que ele é um dos comensais, portanto, é um igual, que compartilha o alimento e o momento afetivo do ato de comer; o contrário pode significar o isolamento, o distanciamento e a ausência da comunicação.
2.3 O filme-propaganda: Regras da casa
Iniciamos a análise da propaganda em questão pela sua descrição.
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2.3.1 As imagens


Fig.1 – Frame do filme Regras da Casa Fig.2 – Frame do filme Regras da Casa Fig.3 – Frame do filme Regras da Casa Fig.4 – Frame do filme Regras da Casa Fig.5 – Frame do filme Regras da Casa Fig.6 – Frame do filme Regras da Casa Fig.7 – Frame do filme Regras da Casa Fig.8 – Frame do filme Regras da Casa Fig.9 – Frame do filme Regras da Casa







Fig.10 – Frame do filme Regras da Casa
Fig.11 – Frame do filme Regras da Casa
Fig.12 – Frame do filme Regras da Casa



Fonte: Imagens capturadas na rede1 .
1 Disponível em: <https://goo.gl/15S6Qu>. Acesso em: 09 out. 2018.
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Ocomercial se inicia com uma janela de uma casa. Aluz se acende e, em close , vê-se uma mulher chegando a casa com duas garrafas do refrigerante Coca-Cola à mão. Entra em casa e é recebida pelo cachorro, que, feliz, saúda-a. Alegenda encontra - se em todos os quadros. Neste, a frase Ao entrar, cumprimente! é representada pela ternura do melhor amigo do homem, o cão. A busca pelo ethos de amizade é requerida neste quadro, que se inicia com a personagem entrando em sua casa com duas garrafas de refrigerante. Se ela é recebida pelo cão, para quem seriam as duas garrafas da bebida? Presume-se, então, que a representação da amizade pelo cão seja algo tão forte que a personagem estaria levando o refrigerante para o cachorro, seu companheiro. Os planos são mínimos e velozes, alguns poucos segundos apenas, o que dá à propaganda a velocidade impressa em um comercial de TV. A seguir, duas crianças correm em direção à geladeira e pegam um pedaço de bolo. Observa-se a cumplicidade, pois estão com uma lanterna à mão e imagina-se que estejam assaltando a geladeira à noite. São dois quadros num mesmo plano: foco e desfoque. No momento em que nos fica visível o interior da geladeira, há um jogo de exibição de apenas dois segundos. O refrigerante está focado e o menino e o bolo, desfocados. Após esse tempo, inverte-se o jogo de focos: o menino e o bolo entram em foco e as duas garrafas de refrigerante saem. Este jogo é bastante interessante, pois elipsa o verdadeiro objetivo do comercial. É como se o foco nas garrafas fosse despretensioso e casual. Como se a câmera estivesse se adaptando ao ponto de captação. Sabemos que uma empresa como essa não faria um comercial onde algum ponto específico pudesse revelar amadorismo. Então, até o que parece amadorismo é intencional.
Os meninos pegam o bolo e repartem. A legenda Nada tem dono, tudo é dividido corrobora a cumplicidade demonstrada pela imagem e pelo número de garrafas de refrigerantes na geladeira. O comercial quer trabalhar a amizade e a cumplicidade no nível máximo do apelo afetivo do espectador, exibindo até aqui duas figuras emblemáticas de sensibilização da emoção humana: o cão e as crianças. As funções emotiva e conativa da linguagem encontram-se conscientemente presentes. É o uso do discurso consciente, lançando mão de funções específicas da linguagem para atingir determinado resultado. Segundo Jakobson (1995, p. 73-86), há seis elementos constituintes do processo comunicacional. Esses elementos atendem a funções
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específicas que a linguagem poderia desempenhar. Assim, a figura do emissor ou locutor centra-se na emotividade que pretende dar à mensagem enviada. Somado a isso, a função conativa ou apelativa da linguagem centra o objetivo da comunicação no receptor ou interlocutor da mensagem. Então, o que podemos observar no com ercial é que essas duas funções estão conscientemente sendo trabalhadas para produzir um efeito esperado no espectador.
O próximo quadro exibe a ternura de uma mulher grávida, promovendo a possibilidade de comunicação entre um bebê ainda no útero e seu pai. A ternura é um dos elementos mais apelativos da afetividade. Ela usa os recursos da função poética da linguagem; ou seja, constrói certa retórica para a mensagem em questão. A produção desses efeitos retóricos não se vê exclusivamente na mensagem centrada na língua escrita, mas em qualquer outro código que se preste a comunicar o afeto, por exemplo a linguagem imagética. A legenda registra Quando um fala, o outro escuta. A ternura do escutar revela-se como gesto de carinho e consideração pelo outro. A construção fílmica privilegia o sentimento de ternura como forma de agregação familiar.
Se não sabe, pergunte! Se não consegue, peça ajuda! Se molhar, seque! Prometeu, cumpra! são frases de construção imperativa. É importante observar que as formas verbais do modo Imperativo pergunte, peça, seque e cumpra, num contexto que prescindisse da imagem, poderia provocar um efeito reverso daquele que se pretende construir. O imperativo em língua portuguesa revela ordem ou conselho. A forma injuntiva de comunicação precisa ser modalizada para que não revele pedantismo ou diferenças hierárquicas ofensivas. No caso do comercial, a empresa ousa usá-la, mas a associa a imagens muito afetivas, imagens que deflagram sentimentos ligados à afetividade ou que remetem a uma memória guardada no sujeito. Assim, neste caso, a injunção da forma imperativa é atenuada pelas imagens ligadas à afetividade.
2.3.2 A inclusão
A propaganda pretende ser inclusiva. Há quadros que contemplam as minorias discriminadas: mulheres gays, casais negros e crianças com deficiência. Com esse movimento, a empresa busca abarcar um mercado mais amplo, um mercado que acena
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para o consumo como algo que não pode ser desconsiderado. A proposta do vídeo é incluir todos os grupos; é mostrar que a família pode ser constituída de diversas maneiras, que a família só se compõe pelo afeto quando acolhe todos os seus membros. O acolhimento familiar dá ao sujeito a noção de lugar no mundo, desenvolvendo o sentimento de pertencimento, tão importante para as construções futuras, no caso da criança, pertinentes ao desenvolvimento humano. A comensalidade em família pode configurar-se, nesse sentido, como oportunidade de estabelecimento do elo afetivo, que fortalece o sujeito para os embates porvindouros.
É possível afirmar que os elementos familiares, como os primeiros mediadores entre a criança e o mundo que a cerca, ao lançarem mão da comensalidade familiar como instrumento, fazem considerável diferença na vida de jovens e adultos. Comer à mesa, longe de ser uma etiqueta ou uma simples convenção social, pode se constituir numa metodologia de acesso ao sujeito, bem como de fortalecimento de sua autoestima, o que potencializará a estruturação da linguagem, o desenvolvime nto cognitivo e a noção de pertencimento à sociedade em que vive.
2.3.3 As cores
Vemos um jogo constante no comercial, que contempla a alternância de claro e escuro, além de foco e desfoque. Uma névoa, provocando efeitos de anoitecer e amanhecer, dá ao filme uma aura de acolhimento no próprio lar. É como se a névoa pudesse nos remeter ao sonho. O resultado é nos emaranharmos nessa aura e lembrarmos de nossa família. Se temos uma família nos moldes da apresentada no filme, comprazemo-nos por ela e nos achamos privilegiados por tê-la (a imagem construída torna a família um objeto de consumo, algo que se precisa para sobreviver. Torna-a, ainda, um item da sociedade consumista, pois necessitamos dela para sermos felizes). Se não temos uma família nesses moldes, desejamos tê-la e a vemos como parâmetro para a felicidade. Mesmo que o filme apresente possibilidades de famílias algo diferentes, como é o caso da família de duas mulheres lésbicas ou a família com crianças com síndrome de Down, a aura em que se alocam essas cenas são tão oníricas que se tornam poéticas.
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Os tons pastel imperam na paleta de cores do filme. Esses tons se referem a todas as cores que possuem uma alta luminosidade e pouca saturação, resultando em um tom suave e pálido.
Considerando o contexto atual de globalização, com um número imenso de informações recebidas todo o tempo, o uso de tons pastel simboliza uma quebra. São tons calmantes, pouco agressivos e que trazem conforto visual. Além disso, por sua neutralidade tonal, acabam se destacando no meio de outros materiais com cores mais saturadas.
Atualmente, podemos ver esses tons principalmente em interfaces digitais e nas propagandas que buscam remeter o espectador a estados elevados de alma. Sites e aplicativos, assim como roupas e outros produtos exploram bastante esse tipo de cor. Esses tons são muito utilizados quando o objetivo final é uma estética convidativa e sofisticada. Definindo o objetivo desse filme, podemos pensar que a empresa uniu várias linguagens para culminar em algo que pudesse desconectar o espectador da sociedade consumista e reconectá-lo com o genuíno; ou seja, fazê-lo voltar a atenção às coisas importantes da vida: a simplicidade do viver. As tomadas fílmicas partem de um roteiro, então, que contempla a incidência de luminosidade natural, uma paleta de cores que expressa suavidade, a presença das mesas proponentes de uma comen salidade positiva e agregadora, e, por fim, a presença de uma música não diegética, Home, que arremata o processo de captura emocional do espectador.
2.3.4 A música
Transcrevemos aqui a letra da música utilizada no filme (tradução-livre2 ):
Lar
Segure-se em mim enquanto vamos
2 Original em inglês: Home. Hold on, to me as we go/As we roll down this unfamiliar road/And although this wave is stringing us along/Just know you’re not alone/Cause I’m going to make this place your home/Settle down, it'll all be clear/Don't pay no mind to the demons/They fill you with fear/The trouble it might drag you down/If you get lost, you can always be found/Just know you’re not alone/Cause I’m going to make this place your home/Settle down, it'll all be clear/Don't pay no mind to the demons/They fill you with fear/The trouble it might drag you down/If you get lost, you can always be found/Just know you’re not alone/Cause I’m going to make this place your home (grifo nosso ).
INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980- 5276.
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Enquanto descemos por este caminho desconhecido
E embora esta onda esteja nos amarrando Apenas saiba que você não está sozinho Porque eu vou fazer deste lugar o seu lar Acalme-se, tudo vai ficar claro
Não preste atenção aos demônios
Eles enchem você de medo
O problema pode arrastá-lo para baixo
Se você se perder, você sempre pode ser encontrado
Apenas saiba que você não está sozinho Porque eu vou fazer deste lugar o seu lar Acalme-se, tudo vai ficar claro
Não preste atenção aos demônios
Eles enchem você de medo
O problema pode arrastá-lo para baixo
Se você se perder, você sempre pode ser encontrado
Apenas saiba que você não está sozinho Porque eu vou fazer deste lugar o seu lar Fonte: Regras da Casa (grifos nossos) .
Destacamos primeiramente as duas formas de imperativo usadas: segure-se e acalme-se. A semântica impressa nos remete a duas ações que estabelecem confiança entre os interlocutores. A segurança oferecida pelo locutor ao interlocutor é algo que surge numa sequência sintático-semântica: o verbo segurar oferece a possibilidade de que o interlocutor se acalme. Esta sequência é entremeada pela palavra lar e pela afirmação de que o outro não está sozinho. A companhia do eu lírico é reafirmada por esse verso: Você não está sozinho. A musicalidade (harmonia) é um outro elemento que se coaduna à escolha das cores e à letra da música. O arranjo conta com muitos instrumentos harmônicos e uma discreta bateria que marca o ritmo. Ou seja, pouca percussão e mais suavidade fortalece o projeto de levar o espectador a uma aura de paz, tranquilidade; levá-lo à noção de família agregadora e acolhedora.
Ainda que a letra da música ofereça todos os recursos pragmáticos no amparo e no acolhimento do sujeito por essa ideia modelar de família, o eu lírico não descarta a possibilidade de que seu interlocutor se perca e se distancie dos caminhos do afeto e da família. Assim, com o verso Se você se perder, você sempre pode ser encontrado , ele deixa suspenso o plano B: se, mesmo com todo acolhimento e afeto, o interlocutor não ingressar na dita aura de família, cuja representação maior na música é o lar, haverá sempre a possibilidade de retorno. Estabelece-se, aí, uma dicotomia interessante: há o caminho ofertado pelo eu lírico que, segundo o filme, é o caminho certo: do belo, do bem e do verdadeiro. O outro caminho não é mencionado, porém, sabe-se que a
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antítese de belo, bem e verdadeiro é feio, mal e falso. Por isso, o caminho longe da família é feio, falso e do mal. No entanto, mesmo que o interlocutor se desvirtue, é sempre possível retornar ao belo, ao bem e ao verdadeiro: a família modelar.
3 Considerações finais
Um mundo de sentidos e significados embutidos em nomes e marcas e sua associação com crenças, valores, afetos e emoções transita nas cidades e instiga os indivíduos a fazerem suas escolhas. Light, diet, saudável, orgânico - em embalagens sedutoras - são bricolagens que hoje se construíram socialmente e alimentam uma rede simbólica e de consumos. Entender essa lógica é fundamental neste nosso tempo de ofertas múltiplas.
É notável que uma empresa, cujos produtos são colocados como perniciosos à saúde por diversos setores da sociedade, mantenha-se liderando o mercado mundial de refrigerantes.
A análise dos componentes do filme-propaganda Regras da casa nos esclarece como esse processo de liderança se mantém há tanto tempo. O marketing da empresa conhece os elementos que podem de alguma forma depor contra o consumo do produto. Por isso, esses contras não se evidenciam em nenhum mom ento; simplesmente, são esquecidos. Os prós são evidenciados, são eles que vão reforçar a marca. Família, afeto, cumplicidade, amizade são constituintes de um tipo de comensalidade, apresentada pela empresa, que busca reiterar um modelo de família de um tempo em que as relações eram mais duradouras. Negar a velocidade das relações sociais imposta pelo processo consumista no mundo globalizado é reanimar no consumidor o desejo de que, através de determinado manual de regras, ele logrará a almejada felicidade.
A marca em estudo usa recursos da montagem que implicam o espectador no processo de construção do olhar. Os tons pastel, a música suave de letra fácil, as pessoas bonitas e saudáveis, o acolhimento, a inclusão; enfim, os recursos usados propositalmente na composição da propaganda capturam o espectador em seus desejos de felicidade, pelo afeto familiar, através da comensalidade. Buscar a felicidade, desde sempre, habita a consciência do homem. A lógica consumista oferece essa felicidade
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em doses homeopáticas e ilimitadas. Quando se chega ao momento de se ter aquilo de que pensamos necessitar para sermos felizes, o mercado suscita outros desejos e posterga essa felicidade, até que se consuma novamente, o que se configura num ciclo interminável.
REFERÊNCIAS
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Recebido em: 10.10. 2018
Aceito em: 12.11. 2018
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