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Cidade multifacetada: um estudo acerca dos imaginários sobre Fortaleza, promovidos por compositores cearenses

Multifaceted city: a study concerning the imaginaries about Fortaleza promoted by composers from Ceará

Silvia Helena Belmino

Professora adjunta IV da Universidade Federal do Ceará, Brasil. Doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília , Brasil. E-mail: silviahelenabelmino@gmail.com

Robson da Silva Braga

Professor Adjunto A do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, Brasil. Doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Pós-doutorado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio

de Janeiro, Brasil. E-mail: robsonsilvabraga2@gmail.com

Resumo:

Este trabalho se propõe a descrever e analisar os imaginários e as experiências urbanas de compositores que escolheram a capital do Ceará como fonte de inspiração para a escrita de suas canções. Para esta pesquisa, foram selecionadas músicas de três compositores/músicos: Pingo de Fortaleza, Calé Alencar e Kazane. A partir de entrevistas realizadas com eles, foi analisado de que modo suas relações com os espaços da cidade ajudaram a conformar as noções acerca de Fortaleza que aparecem em suas composições musicais. Nesse sentido, analisamos uma composição de cada um dos três artistas e como elas dialogam em termos de construção simbólica do espaço citadino. Esse conjunto de composições musicais é resultado de um mapeamento feito em outubro/novembro de 2017, a partir do qual foram catalogadas músicas que citavam lugares de Fortaleza.

Palavras- chave:

Imaginários; Experiências Urbanas; Composições Musicais; Fortaleza.

Abstract:

This work aims to describe and analyze the imaginary and urban experiences of composers who chose the capital of Ceará, a brazilian state, as a source of inspiration for the writing of their songs. This research selected songs from three composers/musicians: Pingo de Fortaleza, Calé Alencar, and Kazane. From interviews with them, it was analyzed how their relation with the spaces of the city helped to conform the notions about Fortaleza in their musical compositions. In this way, a composition of each of the three artists were analyzed and also how they dialogue in terms of the symbolic construction of the city space. This set of musical compositions is the result of a mapping done in October/November of 2017, from which were catalogued songs that mentioned some places of Fortaleza.

INTERIN, v. 24, n. 1, jan./jun. 2019. ISSN: 1980- 5276.

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Keywords :

Imaginary; Urban Experiences; Musical Compositions; Fortaleza.

1 Introdução

A cidade de Fortaleza, capital do Ceará, já foi descrita por poetas, músicos, escritores, políticos, por profissionais de marketing e do turismo. As imagens produzidas nesse caleidoscópio de olhares nos remetem a uma cidade multifacetada, definida a partir de símbolos plurais. A Fortaleza do turismo apresenta-se aos visitantes de maneira sedutora. Para ela, o sol brilha o ano inteiro, os verdes mares banham-na, a alegria e a hospitalidade fazem-na única entre as capitais litorâneas do Nordeste brasileiro. Durante as primeiras chegadas massivas de turistas estrangeiros, nos anos 1980, foi apresentada como “o Caribe brasileiro”1, por sua natureza “exótica” e “selvagem”, conforme anúncios veiculados nos jornais argentinos Clarín e La Nación em 1992. Na Copa do Mundo de Futebol de 2014, foi uma das sedes do megaevento, sendo denominada pelos profissionais de comunicação e marketing como “a cidade-sede da alegria”2, uma cidade construída para agradar aos visitantes. Uma cidade em festa.

Aos olhos dos moradores, outras Fortalezas vão se mostrando, com outras referências e outros símbolos. A “capital da seca”; a “sétima cidade mais violenta do mundo”3; uma das de maior desigualdade socioeconômica; aquela que, logo na entrada, apresenta as diferenças econômicas entre os mais ricos e os mais pobres. Essa Fortaleza, de baixa autoestima, enxerga-se, por vezes, feia, deselegante e sem atrativos. Esse sentimento é reforçado por parte de seus governantes, que a esconde, ora por trás de tapumes, como ocorreu na Copa do Mundo 20144, para não ser vista por torcedores visitantes; ora pela especulação imobiliária, que desloca comunidades inteiras para atender aos interesses do capital, afastando dos turistas a cidade constantemente invisibilizada, a exemplo de bairros como o Conjunto Palmeiras, que

1 Jornais argentinos Clarín, 06 jun. 1992; e La Nación, 12 jun. 1 992.

2 Disponível em: <https://goo.gl/ScMd7N>. Acesso em: 06 ago. 2018.

3 Fortaleza foi considerada pela pesquisa realizada em 2017 e divulgada em 2018 pela ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz a sétima cidade mais violenta do mundo. Disponível em: <https://goo.gl/cuXezx>. Acesso em: 06 ago. 2018.

4 Disponível em: <https://goo.gl/gCCkRS>. Acesso em: 06 ago. 2018.

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possui o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano5 (IDH) entre os 119 bairros da capital, construído para abrigar famílias retiradas de áreas de risco e de especulação imobiliária. Apesar de nunca ser escolhida para ser a imagem cartão - postal da cidade, a Fortaleza pobre resiste e reivindica um lugar ao sol e de luz.

Sob a contemplação de artistas, Fortalezas são descortinadas. Ao cantar a capital cearense, cada artista apresenta um olhar singular de lugares comuns, espaços por vezes despercebidos pela maioria das pessoas, que são retratados com beleza, sentimentos e afetos. A cidade multifacetada é apreendida por compositores conforme a experiência de cada um. Assim, em uma mistura de realidade e idealização, imaginários vão sendo conformados em diferentes pontos da cidade. Para cada olhar, há uma Fortaleza distinta. Isso não significa dizer, contudo, que algo de social, que atravessa todos os artistas em geral, não ajude a compor tais imaginários sobre o espaço citadino.

Com base nisso, este trabalho se propõe a descrever e analisar imaginários e experiências urbanas de compositores cearenses que escolheram a capital do Ceará como fonte de inspiração para a escrita de suas canções. Fruto de uma pesquisa mais ampla, este texto traz um pequeno recorte dos resultados obtidos nas investigações iniciais.

Após mapeamento de composições sobre Fortaleza, realizado de outubro a novembro de 2017, foram selecionadas, para este artigo, músicas de três compositores: Pingo de Fortaleza, Calé Alencar e Kazane. Os três foram selecionados pela representatividade de suas composições, pela diversidade temática entre os três e por um acesso a eles mais ou menos facilitado. A partir de entrevistas realizadas com os três, foi analisado de que modo as relações com os espaços da cidade ajudaram a conformar as noções acerca de Fortaleza que aparecem nas composições musicais. Nesse sentido, analisou-se uma composição de cada um dos três artistas, inserindo-as em um conjunto de composições de artistas cearenses com

5 Identifica-se que 75,6% dos bairros de Fortaleza apresentam uma renda média pessoal menor do que dois salários mínimos em valores de 2010. Além disso, o bairro mais rico de Fortaleza, o Meireles, possui uma renda média 15,3 vezes maior do que o bairro mais pobre, o Conjunto Palmeiras. Dados relatório do Instituto de

Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE) de 2012. Disponível em: <https://goo.gl/JCfBwH>. Acesso em: 06 ago. 2018.

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as quais dialogam em termos de símbolos e imaginários. Esse conjunto de composições musicais é resultado de um mapeamento feito em outubro/novembro de 2017 nas redes sociais virtuais pelo Grupo de Pesquisa de Imagem, Consumo e Experiências Urbanas em Produtos e Processos de Comunicação (Giceu), a partir do qual foram coletadas músicas que citavam lugares da capital cearense.

Foi realizada uma entrevista semiestruturada com cada um dos três compositores. As perguntas versavam sobre a história de vida deles, sobre a relação deles com a cidade desde a infância até os dias atuais e sobre as composições deles que retratam Fortaleza. Ao serem contactados, os entrevistados foram informados que o conteúdo de suas entrevistas seria analisado na pesquisa que resultaria em trabalhos científicos, a exemplo deste texto. Pingo, Kazane e Calé foram entrevistados, respectivamente, em 1º, 3 e 10 de agosto de 2018. Pingo e Calé foram entrevistados em suas respectivas residências, na capital cearense. Já Kazane foi entrevistado no Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza.

2 Imaginários sobre o espaço urbano

As construções de imagens acerca das cidades contemporâneas passam por ações de comunicação e marketing. Noções como as de “cidade- mercadoria” (SÁNCHEZ, 2010), “global city” (SASSEN, 2006), “smart city” e “cidade criativa” (REIS; KAGEYAMA, 2011) – modelos urbanos estabelecidos por instituições públicas e privadas – são apropriadas por governos e, por meio de ações de marketing institucional, acabam por alimentar os imaginários de visitantes e moradores sobre as cidades que visitam ou em que vivem.

No mercado mundial de cidades, o diferencial competitivo se apresenta a partir de conceitos ou de denominações que as cidades estabelecem para si: “criativa”, “inovadora”, “inteligente”, “turística”, etc. As ações de comunicação no âmbito urbano criam imagens e imaginários nem sempre percebidos a olho nu pelos mora dores.

As imagens promovidas a partir da música dos três compositores que trazem Fortaleza como tema nos levam a refletir sobre os espaços/elementos escolhidos para

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retratar essa cidade. O músico/compositor estabelece outra relação de experiência com o lugar que pode ser decorrente de uma memória afetiva e/ou idealizada do espaço. Sem se demonstrar alheio às questões subjetivas que atravessam as experiências de cidade de cada sujeito, devem ser consideradas, ainda, as noções coletivas que permeiam a sociedade como um todo.

Legros et al (2007) nos lembram que todo texto ou imagem carrega as marcas, mesmo ínfimas, da imaginação criadora. Os autores denominam como “sistemas de criatividade imaginaria”, que devem ser refletidos para se chegar ao imaginário social. Para tanto, eles propõem aos pesquisadores que observem “as intenções do criador, o suporte de criação, a percepção estética da obra ou seu reconhecimento social” (LEGROS el al, 2007, p. 109). E complementam que a interpretação não é nada além de uma maneira de criar novos imaginários, novas realidades do conhecimento.

Para Philip Kotler et al (2006), a imagem pode ser construída por meio de estratégias de marketing. A imagem de um lugar seria:

(...) um atributo formado por crenças, idéias e impressões que as pessoas têm desse lugar. As imagens costumam representar a simplificação de inúmeras associações e fragmentos de informações e são o produto da mente tentando processar e enquadrar enormes quantidades de dados relacionados relacionadas a um lugar (KOTLER, 2006, p. 183).

Capturar a imagem de um lugar, na perspectiva do marketing, seria “tirar a essência”, fazer síntese de dados sobre o local para criar algo administrável (GASTAL, 2005). Para a autora, não são as imagens que produzem imaginários e sim o contrário: são os imaginários que produzem imagens, uma vez que os imaginários são determinados por conjuntos de imagens que se tornam produtos simbólicos no âmbito social. Simbolismo esse que seria utilizado pelos agentes da comunicação para agregar valores e conceituar espaços urbanos das cidades contemporâneas.

Nesse sentido, Fernanda Sánchez (2010), Any Ivo (2014) e Amando Silva (2014; 2001) apontam as estratégias de comunicação e marketing como importantes instrumentos de criação de imagem do lugar, cujo objetivo é ter uma imagem- síntese capaz de estabelecer diferentes imaginários para ser consumido, por exemplo, no turismo. Corroboram com essas construções imagéticas repertórios fotográficos ,

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literários, cinematográficos, jornalísticos e musicais. A busca desses repertórios pelos visitantes nos lembra a descrição de Ítalo Calvino acerca da visita de Marco Polo à cidade de Tamara:

O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita que estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes (CALVINO, 2003, p. 58).

As cidades passam a ter semelhanças em virtude de implantações de estratégias de branding marketing. Trata-se de criar uma nation brand cuja função é estabelecer vínculos entre o mercado, a política, a sociedade e a cultura. A marca nacional reforça a imagem competitiva e legitimadora de um conceito de país, por meio de uma construção de identidade nacional a serviço de estratégias de diferenciação para atender aos interesses de corporações e agentes do mercado global. Uma marca forte, bem posicionada no mercado global, agrega valor e credibilidade aos produtos e aos serviços produzidos em seu território (IVO, 2014). Entretanto, esse valor mercadológico que conduz o gerenciamento do espaço urbano nem sempre é percebido pela população local ou mesmo pelos produtores culturais. Muito embora, com a padronização das gestões das cidades, a cultura local torna-se a diferenciação competitiva e atrativa, passando a ser o principal atributo de comercialização dos lugares, tornando-se o valor instrumental do desenvolvimento urbano inserido na dinâmica do capital globalizado. Essa constatação sobre os modelos capitalistas contemporâneas de gestão das urbes nos remete à reflexão de David Harvey (2014) sobre não separar os laços sociais, as relações com a natureza, os estilos de vida e os valores estéticos desejados pela população com as intervenções urbanas para atender ao mercado.

O simbólico possui conotações especiais além do significado evidente e convencional. Assim, usar a cultura para diferenciar cidade e captar recursos, emb ora seja uma alternativa para desenvolvimento econômico, pode criar um imaginário diferente da percepção social. A partir dessa reflexão, levantamos a seguinte hipótese: a música é uma importante contribuição na elaboração de imaginários de lugares de Fortaleza. Com isso, surge a seguinte indagação: como as experiências de

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cidade de artistas contribuem para a conformação de imaginários urbanos, reforçados por suas composições musicais?

3 Experimentar a cidade

Como nos lembra Mongin (2009), a cidade é composta por um espaço finito, mas que permite “trajetórias infinitas”. Para o autor, uma cidade toma forma na medida em que os sujeitos transitam por ela. Isso não significa, contudo, que ela desemboque numa linha no horizonte, sem fim. Ou seja, todos os infinitos percursos permitidos pela cidade são puxados para um centro, voltam-se à cidade, numa força centrípeta que ela exerceria sobre as práticas de seus transeuntes.

A cidade é circunscrita, a delimitação espacial é a condição de possibilidade de percursos infinitos e insólitos. A cidade é uma entidade discreta, limitada e aberta sobre um ambiente, mas essa característica centrífuga (a cidade é voltada para fora, a periferia próxima ou distante) é sempre re equilibrada por uma ligação (centrípeta) com o centro (MONGIN, 2009, p. 49).

Nessa perspectiva, consideramos que as vivências dos sujeitos citadinos, na maioria dos casos, não serão idênticas ou similares, mesmo que tais sujeitos transitem pelos mesmos espaços, visto que os trajetos são atravessados pelas subjetividades de cada um. As inúmeras caminhadas possibilitadas pela cidade são responsáveis por gerar imaginação e invenção.

Durante nossa pesquisa de campo, mapeando músicas sobre Fortaleza e entrevistando alguns de seus compositores, é perceptível que diversos símbolos da cidade, a exemplo de monumentos históricos e outros cartões-postais da capital cearense, vão compondo o espaço urbano. Contudo, Mongin (2009) defende que “a forma da cidade” não será composta exclusivamente por tais símbolos.

A forma da cidade, sua imagem mental, é a junção de elementos heterogêneos – lugares, percursos, uma ideia da cidade – aos quais faz eco uma toponímia que remete ao ‘nome’, ao nome próprio da cidade, mas também a todos os nomes que contam a história da cidade (nomes de ruas, de escola, de museu...) (MONGIN, 2009, p. 52).

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Assim, consideramos fundamental acessar as memórias e compreender as práticas cotidianas dos compositores das músicas que retratam Fortaleza para que possamos compreender que imaginários sobre a cidade compõem essas composições.

4 São as tristezas da cidade triste

João Vanderlei Militão, conhecido no cenário musical cearense como Pingo de Fortaleza, cresceu em diferentes bairros e isso o fez um apaixonado por vários lugares da cidade. As memórias citadinas que vão da infância à fase adulta são narradas articulando a experiência com os lugares e o processo de criação musical. Ele buscou nos movimentos sociais, políticos e culturais inspirações para compor. Aos ritmos de maracatu, de aboio e de tambores religiosos, cantou importantes movimentos populares do Nordeste e do Ceará, como Canudos, Caldeirão, a revolta abolicionista dos jangadeiros liderada por Dragão do Mar e a Coroação da Rainha Negra.

A Fortaleza de Pingo é uma extensão do sertão, uma capital sertaneja no seu modo de ser. Segundo o artista, há uma tentativa de apagar essas músicas regionais, pois, na avaliação dele, não há interesse por parte dos gestores culturais de financiar ou estimular cantos, lendas e histórias da cultura sertaneja. Sua preocupação em tratar da música de matrizes culturais nordestinas ganhou corpo em suas canções a partir de sua participação nos anos de 1980 nas atividades artísticas do grupo Nação Cariri6 .

[...] então eles trabalhavam a ideia de Canudos, a ideia do Caldeirão, a ideia do cangaço e tudo isso, né... Eles tentavam discutir isso e colocar em discussão e tentar aprimorar a consciência política das pessoas. Então eu fiquei ali, na Nação Cariri, e foi nela que eu consolidei as minhas primeiras parcerias com o Rosemberg, com o Oswald Barroso, com Guaraci Rodrigues e Fernando Nélio [entrevista concedida por Pingo de Fortaleza em 1º de agosto de 2018].

6 Fundado em 1979 na cidade do Crato, o Grupo Nação Cariri reunia jovens escritores e artistas da região. Além de publicar uma revista com o nome do grupo (impressa, inicialmente, sob a forma de jornal), a entidade criou a Nação Cariri Editorial Ltda., para edição de livros, álbuns, discos e filmes, bem como para a promoção de espetáculos de teatro e shows artísticos. Entre outros autores, já tiveram livros publicados com o selo da Nação Cariri os escritores José Alcides Pinto, Oswald Barroso, Rosemberg Cariry, Luciano Maia e Carlos Augusto Viana. Disponível em: <https://goo.gl/8dNe2z>. Acesso em: 20 ago. 2018.

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Atualmente, entretanto, ele se diz criticado por ser “regional”, por cantar a cidade, por apresentar em suas músicas “matrizes culturais”. “Isto é visto por alguns como algo atrasado. Nós somos universais, nós temos que cantar a universalidade. Olha, não existe essa dicotomia: é regional ou universal. Tudo que é universal é regional, tem um lugar, um ponto de partida”7 .

Hoje, Pingo de Fortaleza coordena o Grupo Maracatu Solar, que se apresenta durante o carnaval da cidade. A música “Maracatu Fortaleza” (2010), escolhida para ser analisada neste artigo, é um produto da parceria com Rosemberg Cariri. O argumento central da composição, presente em duas estrofes e no refrão, refere- se aos elementos dos imaginários da Fortaleza litorânea, da cidade turística. A índia Iracema, a noiva do sol, os verdes mares e as dunas:

Oh Maria, chama o pessoal / Que o nosso Maracatu, oh Maria, já vai começar / Fortaleza, morena cidade / Sempre beijada pelo verde mar / Emoldurada pelas brancas dunas / No seu pescoço, tal qual um colar / É Iracema, índia formosa / Que de saudade vive a soluçar / (Refrão): Beira - mar, eh, eh / Quem beira quer entrar / Beira-mar, eh, eh / Quem beira quer entrar / Beira-mar, Beira- mar.

A composição apresenta uma cidade que se propõe a ser moderna, com uma arquitetura semelhante à cidade americana de Miami, na qual os artistas não se reconhecem nela. A cidade que não se reconhece negra.

No carnaval tem caboclos pálidos / Maracatu são negros retintos / São a tristeza da cidade triste / Envergonhados dos cordões dos índios / São futuristas da Nação Miami / São um futuro que já foi extinto.

A composição retrata uma cidade repartida, com praias divididas ao leste para os pobres e ao oeste para os ricos .

Ai, Fortaleza, pelas suas ruas / Nas suas praças onde vaiaram sol / O povo ri da sua própria miséria / O povo fala em arribar pro sul. / Arranha- céus sobem nas alturas / Para dar sombra a seus meninos nus.

Podemos observar na explicação de Pingo sobre o processo de produção e em seguida trecho da obra :

7 Arquivo do Grupo de Pesquisa, entrevista realizada em 01 ago. 2018.

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A letra do Rosemberg tem essa visão. Eu acho que, um pouco mais ampliada da Nação Cariri, que a gente não se reconhece na cidade. Ele chama a cidade de Miami, né, ele critica a desigualdade, ele mostra no final uma cena de um arranha-céu e uma criança no chão... Ele filma o leste [parte mais nobre da cidade], eu não sei se você percebe, ele faz tipo uma apartação da cidade, ele filma leste e oeste [região mais periférica]. A gente foi filmar no Pirambu, na cidade, um arranha-céu mais chic na época, daqueles espelhados [entrevista concedida por Pingo de Fortaleza em 1º de agosto de 2018].

Há um resgate do mito fundante, a índia Iracema, personagem do romance homônimo de José de Alencar, escrito em 1865. O conceito de mito fundante, abordado por Chauí (2000), traz a narrativa como uma solução imaginária para as tensões, os conflitos e as contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível de realidade. Nesse sentido, uma história de amor pareceu um caminho mais interessante para se falar da origem.

Iracema hoje quer ser moderna / Loura à força ela deseja ser / Mas a cor que lhe veste o corpo / É de cabocla, que a faz sofrer / O estrangeiro foi pra não voltar / Deixou seu filho, e já não quer mais ver / Chora, Fortaleza, os seus pés de barro / Com suas favelas de miséria e lama.

Na versão dos compositores, as “iracemas” da atualidade são “[...] suas meninas roídas de fome. Que por esmola se deitam na cama. E o estrangeiro que virou turista. Colhe a meiga flor, e ninguém reclama”8. A Fortaleza do Pingo é a Fortaleza periférica, uma cidade abandonada, que deseja ser branca (loura) para ser aceita, além de descaracterizar a arquitetura para se tornar moderna.

5 Aldeota é a maior ficção

Vinicius Aurélio Borges Teixeira, diferentemente de Pingo de Fortaleza, não nasceu na capital cearense. Veio de Sousa, uma cidade na região do semiárido da Paraíba. O artista plástico e roqueiro de cabelos compridos e grisalhos escolheu Kazane como nome artístico.

A música entrou na vida de Kazane como instrumento de protesto contra a discriminação das produtoras culturais – centralizadas nos anos de 1970 no Sudeste

8 Trecho da letra do Maracatu Fortaleza .

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do Brasil – com os artistas nordestinos em início de carreira. Em sua avaliação, para ele ser artista no Nordeste do Brasil nos anos de 1970, era algo muito complicado, principalmente, por ser roqueiro e fazer música contra o sistema vigente no país. Entretanto, seu núcleo familiar o fortaleceu nesse sentido, pois:

O meu avô paterno foi campeão pelo Ceará Esporte Clube em 1922, no Campeonato da Independência, centenário da independência, ele era o vô Vitório, tinha o Vitório bar, não existe mais, ali vizinho ao campo do Ceará. Meu outro avô era mais artístico, eu não conheci, morreu muito cedo, ele fez o busto de um cara que era um herói aqui, estudante do Liceu, tem na Praça da Lagoinha, houve um incêndio no hospital Carlos na época e morreu muita gente, esse cara vinha do Liceu e ele entrava ia salvando, era um jovem, e em uma dessas ele morreu no fogo, aí ele (meu avô) fez esse busto, então meu lado artístico, porque eu também faço escultura, vem daí. Também veio meu nome, Vinícius é do materno e Aurélio é do paterno, então dos meus avôs, um era artista plástico e o outro era jogador de futebol e gostava de fazer letra de música também. O meu pai já velho, já idoso, aprendeu piano e começou a fazer partitura, então tenho essa coisa com Fortaleza, eu não posso deixar de amar [entrevista com Kazane em 3 de agosto de 2018].

Ele complementa relatando a importância da figura materna na sua formação política e artística: “A minha mãe também era ativista e pichava os muros com ‘Viva o cavaleiro da Esperança’9. Era um pessoal que gostava muito de teatro”.

Para Kazane, o estilo musical escolhido para compor sua obra traduz-se no significado que Janis Joplin, cantora e compositora americana dos anos 1960, dava ao rock and roll: qual seja, sexo, droga e rock and roll. Esse movimento musical surgiu no final dos anos 1940 e início de 1950 nos Estados Unidos da América e passou a ter uma maior adesão e importância com os protestos contra a Guerra do Vietnã. Ele ressalta que não usa drogas e autodefine-se como:

Eu sou mais artista plástico, meu negócio é desenho e pintura, eu gosto de quadrinhos também, e o rock tem a ver com quadrinhos, então minha observação foi mais pro rock e pro blues. É uma coisa simples e que te conta uma história, eu gosto sempre que a minha música tenha uma linha, uma trajetória. Então eu comecei a ver o rock lá no Sul e tive a oportunidade de ver bandas [entrevista com Kazane em 3 de agosto de 2018].

9 Luís Carlos Prestes, conhecido como o Cavaleiro da Esperança, foi um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro e liderou a Coluna Prestes. Foi preso e exilado político durante os regimes de Getúlio Vargas e do Golpe Militar de 1964.

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Analisamos aqui a composição intitulada Roqueiro do Montese, de 2007. Trata-se de uma música autobiográfica e com referências à canção “Carneiro” (1974), de Ednardo, cuja narrativa é sobre a esperança do artista de ganhar no jogo do bicho e ir embora para o Rio de Janeiro, ser famoso e reconhecido midiaticamente. Na música, Kazane se mostra perseguido pela indústria fonográfica e sem reconhecimento como artista:

Ele queria tocar rock’n’roll / Queria ser famoso / Queria ir pro Sul maravilha / E voltar em capas de revista multicolorida / E para eu repetir a sua voz / Ele foi mobilizado pelo sistema / Que o deixou com mania de perseguição / O roqueiro do Montese já não dorme mais / Sem sentido e com mania de perseguição / Sua jaqueta surrada, olhos injetados e seu desgrenhado cabelão / Está cansado pra vida / Quer pular fora da corrida (O roqueiro do Montese / Kazane).

Kazane morou por dez anos no Sul do país. Como não conseguiu se estabelecer profissionalmente, voltou ao Ceará e compôs a música analisada. O bairro Montese, em Fortaleza, abriga um movimento de rock na cidade. A experiência da capital cearense vivenciada por Kazane é no subúrbio, de viver a diversidade alimentar, as misturas estranhas e a hospitalidade do povo simples:

É isso: eu não digo nem a cidade, eu digo o povo, porque o mais fortalezense é aquele do subúrbio, essa é a minha conta, porque quem tá na Aldeota... Eu digo isso: Aldeota é a maior ficção, porque ela tem uma mistura de paulista com estrangeiro e a gente não vê mais Ceará, eles falam uma língua universal, o que eu acho besta. Porque... Você quer Ceará? Venha para cá. Porque aí, qual é a minha meta? É que, se juntassem suburbanos e fossem para a Aldeota, como um grande show e lá eles fariam uma explosão subterrânea [entrevista com Kazane em 2018].

A relação de Kazane com a cidade é olfativa. O cheiro da cidade é único, em suas palavras. Isso nos remete aos elementos apontados por Armando Silva (2001) para compor o imaginário do lugar. Ao descrever Fortaleza, o músico considera que a primeira imagem que lhe vem à mente seria:

[...] o mar. Para mim, é isso aí, porque eu vinha e via a Praia do Futuro. Toda vida era aquela coisa de ver o mar, aquela faixa de água, sabe, e a gente ia de ônibus. Então a onda era o mar e claro que eu, sendo sertanejo... Mas tudo tinha a ver com aqueles cheiros. Fortaleza tem um cheiro... [entrevista com Kazane em 2018].

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O compositor define o cheiro da cidade como uma mistura de cordialidade e o modo de ser do fortalezense do subúrbio:

É um cheiro, uma coisa que não tem em nenhum outro lugar, principalmente no subúrbio. Você vai lá, no subúrbio, e é um cheiro meio... Mas outra coisa que tem também do povo é que eles são capazes de deixar você dormir na cama deles ou na rede deles, e eles se ajeitam ali para uma pessoa de fora, sabe essa coisa que eles têm, eu não sei bem o que é [entrevista com Kazane em 2018].

Para Kazane, Fortaleza é um lugar de acolhimento, de receber quem a deixou para tentar a vida no “Sul maravilha” e retornou depois de ver que seus sonhos poderiam ser realizados no bairro do Montese, com a “Subbanda”, a banda que o acompanhou nas apresentações musicais. Um olhar diferente de Pingo. Um olhar urbano. Um olhar de roqueiro do subúrbio de Fortaleza.

6 Uma cidade- litoral

Nascido em Fortaleza, em 1954, Carlos Alberto Alencar da Silva, conhecido no meio musical como Calé, passou parte da infância em Juazeiro do Norte, cidade ao sul do Ceará, na região do Cariri. Em seu discurso, suas memórias sobre a capital cearense parecem marcadas por esse trânsito entre o interior e a capital. Calé Alencar iniciou suas atividades musicais participando, em 1979, do evento multicultural Massafeira Livre, realizado no Theatro José de Alencar, em Fortaleza.

Ao listar músicas que retratam Fortaleza, Calé elenca inúmeras composições que não retratam objetivamente da cidade, o que demonstra que sua percepção sobre imagens envolve questões mais abstratas, subjetivas. Em suas palavras, um trecho como “azul do céu tão lindo” já seria suficiente para ser identificada como uma música que trata de Fortaleza. São representações citadinas que aparecem nas entrelinhas, que trazem a cidade à tona mesmo que de relance, sem necessariamente remeter a um símbolo específico da cidade. “A Praia de Iracema tá lá (indiretamente)”, defende o compositor.

O discurso de Calé Alencar sobre Fortaleza é geralmente permeado por um saudosismo que marca suas memórias sobre o que ele vivera em décadas anteriores. Durante entrevista, por exemplo, Calé cita algumas vezes a canção “Adeus, Praia de

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Iracema”10, composição de Luiz Assunção, gravada na década de 1950. Presente no repertório de Alencar até hoje, a composição faz referência à alta da maré que, naquela década, destruiu parte da orla da Praia de Iracema, principal cartão-postal da cidade à época.

Embora tal composição faça alusão direta a um episódio concreto de destruição física daquele espaço da cidade em decorrência de um evento natural (avanço das ondas do mar), a composição replicada nos dias de hoje parece aludir a uma memorável Praia de Iracema, que ficou para trás por diversos fatores (tempo, novas práticas culturais, avanço da modernidade e do processo de urbanização da cidade), e não somente por conta daquele evento natural pontual ocorrido na década de 1950.

Embora sem registros escritos ou sonoros, a primeira composição musical que Calé lembra ter composto tratava da Praça do Ferreira, considerada como a principal praça da capital cearense, no Centro da cidade. A praça é local de inspirações para as músicas, poesias, manifestações políticas e de protesto, como o ocorrido em fevereiro de 1945, quando os fortalezenses vaiaram o sol na praça. O evento ganhou a primeira página do jornal O Povo de 1945 e, por curiosidade ou por humor, a vaia da população cearense ao sol estimulou registros históricos e produções artísticas, como podem ser observados nos seguintes trechos:

(...) Pois o sol, nem este escapou de ser vaiado pelo povaréu da Praça do Ferreira. Passou o astro-rei, uma semana sem aparecer, escondido por traz das nuvens. Até que no sétimo dia ele achou de dar o ar da graça, reaparecendo sobre a Coluna da Hora. O povaréu surpreendido com os acontecimentos irrompeu numa vaia... (GALENO, 2000, p. 29).

Entre suas realizações como produtor musical, destacamos aqui a Coleção Memória do Povo Cearense, composta por álbuns que compilam produções de artistas cearenses, a exemplo de Patativa do Assaré, da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto e dos Penitentes de Barbalha. Realizou intensa pesquisa sobre o ritmo baião

10 Adeus, adeus / Só o nome ficou / Adeus, Praia de Iracema / Praia dos amores / Que o mar carregou / Quando a lua te procura / Também sente saudades / Do tempo que passou / De um casal apaixonado / Entre beijos e abraços, que tanta coisa jurou / Mas a causa do fracasso / Foi o mar enciumado / Que da praia se vingou / Adeus, adeus / Só o nome ficou / Adeus, Praia de Iracema / Praia dos amores / Que o mar carregou (Adeus, Praia de Iracema, composição de Luiz Assunção).

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e, de modo mais específico, sobre a obra do compositor cearense Humberto Teixeira, principal letrista da obra de Luiz Gonzaga.

Em março de 2004, Calé fundou o Maracatu Nação Fortaleza, uma das principais agremiações do desfile carnavalesco de Fortaleza até hoje. Em 2005, o músico lançou o disco Loas de Maracatu Cantigas de Liberdade.

No relato de Calé Alencar, o bairro Benfica11 é o “lugar das mangas mais saborosas”, espaço de passagem para as lagoas e para campos de futebol. “Quando eu era adolescente, percorria todo o corredor de mangueiras, tomava banho nas lagoas e assistia ao treino do Ceará, mesmo sendo torcedor do Fortaleza. São essas as lembranças que tenho do lugar” (entrevista com Calé Alencar em 10 de agosto de 2018 ).

Os desejos agora são recordações; afinal, o bairro Benfica de outrora, descrito por ele, não se parece em muitos aspectos com o Benfica atual, bastante urbanizado, tomado por avenidas volumosas, barulhentas e com uma vegetação não tão densa como descrita durante entrevista. As poucas mangueiras que resistem estão concentradas nos prédios públicos da Universidade Federal do Ceará ou nas duas praças do bairro. Outra referência do compositor são as jangadas do Mucuripe, bairro situado na área litorânea da cidade, cujo local na infância lhe serviu para aprender a nadar ao mergulhar por baixo das jangadas. Recordações de uma Fortaleza antiga sob o olhar de uma criança que, nascida na capital cearense, mudou-se na infância para Juazeiro do Norte, no sul do estado, e voltou para sua cidade natal aos 10 anos de idade, quando “descobriu” o mar.

Tempos depois, em 1979, compôs a música Equatorial com Fausto Nilo, que analisamos neste tópico:

Quando eu vejo no quintal uma pequena saudade / Equatorial, vento e varal, vejo você / Equatorial, vento e varal, eu e você / E você dizendo adeus / Palmeiral dos olhos meus / Sopro da brisa que vem lá do mar / E Fortaleza é um cidade litoral / Só pra te ver hoje à tarde / Equatorial, vento e varal, eu e você / Equatorial, vento e varal, vejo você / Quando eu vejo no quintal uma pequena saudade / Equatorial, vento e varal, eu e você / Equatorial, vento e varal, vejo você / E Fortaleza é um cidade

11 O bairro do Benfica, localizado a dois quilômetros do Centro de Fortaleza, é um lugar que concentra as atividades de artistas, de universitários, de movimentos políticos e movimentos culturais de Fortaleza. A Reitoria da Universidade Federal do Ceará situa-se no Benfica.

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litoral / Só pra te ver hoje à tarde / Equatorial, vento e varal, vejo você (Equatorial / Composição e música: Calé Alencar e Fausto Nilo).

A música reforça a Fortaleza litorânea e traz o vento como elemento central da obra, uma brisa noturna que sopra do mar para refrescar a noite quente dos sertanejos, que os moradores mais antigos do semiárido chamam de “vento do Aracati”, cidade no litoral leste do estado. Essa dualidade entre o Ceará litorâneo e o Ceará sertanejo encontra-se presente tanto nas composições quanto nas narrativas dos entrevistados. Segundo José Borzacchiello da Silva et al (2006), a capital cearense:

[...] consegue viver bem com suas funções dicotômicas. Metrópole e parque temático com reprodução da vida sertaneja. Vaquejadas, centros de tapioqueiras, casas de forró e tantas outras manifestações da vida do sertão, confirmam Fortaleza como a metrópole sertaneja do litoral (DA SILVA et al, 2006, p. 54).

Portanto, o pensamento simbólico permite diferentes sentidos de compreensão do mundo. Assim, os imaginários trazidos por uma infância e uma adolescência acrescidos de simbolismos são ressignificados nas obras do compositor. E, de certa maneira, ajudaram a compor as imagens de Fortaleza para o turismo. Nas propagandas turísticas do Ceará há um entrelaçamento entre sol, mar, jangadas na formação do imaginário e da representação do estado. As imagens midiaticamente produzidas perpetuam conceitos simbolicamente articulados e sustentam a formação discursiva que se pretende transmitir por meio delas.

7 Considerações finais

Por meio das análises anteriores, podemos identificar aproximações, complementaridades e tensionamentos entre os compositores cujas composições foram analisadas aqui. Podemos identificar, por exemplo, aproximações entre Calé Alencar e Pingo de Fortaleza, tanto em relação as suas trajetórias artísticas, a exemplo da relação com expressões culturais como o maracatu, como em relação aos cenários urbanos retratados, com grande destaque para os símbolos litorâneos (praia, sol, mar etc.). Ao mesmo tempo, os olhares que são lançados acerca de tais símbolos

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são, em alguns casos, diametralmente opostos: enquanto Pingo olha para a Iracema e observa problemas como exploração sexual, Calé exalta alguns desses símbolos, a exemplo do vento litorâneo.

Quanto à relação de fixação à cidade e a possíveis fluxos migratórios, temos três compositores que experimentaram trânsitos, saindo de Fortaleza em algum momento, mas que fizeram uma opção por voltar à cidade ou por nunca deixá- la efetivamente. Tal permanência fala sobre enraizamentos, sobre as relações afetivas com o espaço urbano. Por outro lado, os três apresentam relações conflituosas com a cidade. Pingo destaca os conflitos socioeconômicos e o processo de exploração e deterioração de espaços da cidade, em especial das periferias. Por sua vez, Calé Alencar trata da deterioração da cidade numa perspectiva do descuido (que pode ser da população ou de seus governantes) ao longo do tempo, demonstrando uma veia telúrica, memorialista e de preservação de uma cidade tradicional. Por sua vez, Kazane aponta para um conflito com as práticas culturais que são sufocadas pela cidade, a exemplo do rock, rejeitado pela indústria fonográfica local, além de destacar uma possível marginalidade de práticas alternativas gestadas em espaços da cidade que poderiam ser lidos como mais “periféricos”.

Uma ponderação necessária a ser feita neste texto é a de que, embora as imagens sobre a cidade sejam plurais, isso não significa dizer que todas essas noções apresentadas acerca do espaço citadino possuem igual força na promoção de imaginários sobre a capital cearense. Afinal, a circulação de tais produções musicais se dá de modo desigual.

As composições que retratam uma cidade turística e litorânea ou mesmo aquelas que associam o espaço urbano às suas fortes relações com o universo sertanejo (resultantes, principalmente, dos fluxos migratórios do sertão para o litoral) ganharam força historicamente tanto em âmbito regional, como em âmbito nacional. Nesse sentido, poderíamos afirmar que, dos três compositores analisados

aqui, Calé Alencar seria o que mais se aproxima de tais noções predominantes sobr e Fortaleza. Dos três compositores analisados, Calé parece ser o que mais dialoga com o imaginário tradicionalista sobre Fortaleza, presente nas artes em geral e, de modo mais específico, nas composições musicais que retratam a capital cearense, apesar dos constantes tensionamentos.

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REFERÊNCIAS

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GASTAL, Susana. Turismo, imagens e imaginários. São Paulo: Aleph, 2005.

IVO, Anete Brito Leal Ivo. Para além dos jogos de futebol: o processo de reestruturação das cidades para a Copa do Mundo de 2014 e a “Marca Brasil”. Salvador: UFBA, 2015.

KOTLER, Philip et al. Marketing de lugares: como conquistar crescimento de longo prazo na América Latina e no Caribe. São Paulo: Prentice Hall, 2006.

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SILVA, José Borzacchielo da et al (orgs.). Litoral e Sertão, natureza e sociedade no nordeste brasileiro. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2006.

Recebido em: 10.10. 2018

Aceito em: 14.12. 2018

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